quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Cento e vinte e quatro


O tempo é relativo: até os físicos contemporâneos, pelo menos alguns deles, duvidam da existência do tempo. Será ele uma dimensão material e calculável da realidade ou uma interpretação nossa, na tentativa humana e falível de compreender como as consequências seguem as causas e não o contrário?

Para Rodrigo, o tempo sempre lhe passara ao lado e fora consequência normal do tecido do cosmos; mas neste momento, em que corre pelo corredor do hospital afastando macas e enfermos do caminho, sente o tempo como nunca sentira antes: parece-lhe não só material, mas quase sólido. O tempo que demora a descer o corredor, pé ante pé, salto após doloroso salto, estica-se, enrola-se e impede-lhe o movimento como um muro. Se até os maiores físicos discutem o assunto, quem é ele, Rodrigo, para correr desta maneira e assim alterar o tempo, moldá-lo ao seu gosto, e demorar menos a descer o corredor e a encontrar o filho?

O tempo que o leitor demora a ler um parágrafo não é o mesmo que o tempo que Rodrigo ocupa a descer o corredor; e ainda assim parece que os intervalos de tempo das duas acções se encontram e conspiram para dificultar a vida do personagem! Afinal que é uma narrativa senão a soma do que corre mal? Vejamos: se o tempo andasse à passada habitual e se tudo na vida corresse pelo melhor, Rodrigo nem estaria naquele hospital. Estaria sozinho, sentado, a beber uma bebida ou a ver um filme. Ligaria ao seu filho para saber como correra a viagem, e diria assim:

- Já chegaste? Como está a tua mãe? Manda-lhe um beijo meu.

Essas coisas entre um pai sozinho e um filho que não gosta de falar ao telefone.

Mas as coisas não são assim, as histórias são feitas para serem contadas e não para serem agradáveis. Na verdade, o avião que transportava o seu filho não aterrou calmamente no outro lado do país, junto à fronteira. Aliás, mal levantou voo. Deu de caras com a tempestade do século, assim a chamavam agora na televisão por causa de todos os acidentes, e foi de narigudo nariz ao lago. Quebrou-se em dois, toda a gente saiu de casa a ver as chamas e ouvir as sirenes. Também para aqueles passageiros azarentos o tempo se moldou mas não ao seu gosto: em vez de lhes acelerar a perda de sentidos ou a morte, demorou-se; e mostrou-lhes, em câmara lenta como nos filmes, cada pedaço de ferro quebrado a voar, cada rugido da estrutura a dobrar-se, cada golfada de água entrando e varrendo a classe económica.

O tempo caminha a seguir contra os bombeiros as lanchas de salvamento que se desdobram buscando sobreviventes. Uns nadam até à praia fluvial, onde encontram cobertores. Outros nadam perdidos e quando acham que estão quase, mesmo quase a chegar à superfície da água, descobrem que não só o tempo mas o mundo se virara ao contrário e nadavam afinal na direcção do fundo do lago. Esperemos que o filho de Rodrigo, nadador aliás exemplar, membro da equipa de natação escolar, medalha de bronze no campeonato do distrito, seja capaz de mais rapidamente se adaptar à água fria e ao som do avião enorme que, na escuridão da água, se afunda, dobra e contorce, levando consigo os mais incautos para as profundezas do rio. Mas já se disse e repete-se: numa história, qualquer que seja, as coisas boas não merecem atenção.

Rodrigo chega finalmente ao fim do corredor (só agora; mais uma vez o tempo moldando-se às necessidades deste narrador sádico), agarra num médico pelo colarinho:

- Onde está o meu filho?

O médico está num turno normal, já viu morrer muito miúdo e já viu muitos pais descendo aquele corredor para lhe fazer a mesma pergunta. Leva o braço à volta deste pai: não sabe o seu nome mas compreende a sua dor, e sente-se até mal consigo próprio porque será ele o portador da notícia. Naquele momento em diante a vida daquele homem será diferente. O tempo que antes se acelerava daquela maneira estúpida e cruel (num momento o miúdo nasce, no outro usa a sanita, no outro equilibra-se sem rodinhas, quando damos por ele vai à escola e cresce-lhe buço) irá agora estender-se de propósito e transformar a vida numa luta contra a lenta passagem das horas. Não quer demorar-se mais, este médico ingrato pela posição que ocupa. Diz:

- Lamento muito.

O pai não precisa de mais, lança-se num pranto, desce sobre uma cadeira e enterra a face na mão. Levanta-se outra vez, agarrado a uma esperança:

- Como sabe?

- Só ia uma criança a bordo – responde o médico quase seco. Arrepende-se. Foi como que dizer àquele homem que a sua criança era ainda mais única e importante do que ele achava anteriormente.

- Quero vê-lo – responde o pai, porque não acredita. Atravessa seguindo o médico metade do hospital. Aceleremos, então: um lance para cima, um corredor, vira à direita, vira à esquerda, duas portas de par em par, mais um corredor longo e em silêncio, este pai sente já estar mais perto do mundo dos mortos que do mundo dos vivos. Não há direito, conduzirem por aqui um pai esperançoso de chegar à maca e ver lá estendido e morto o filho de alguém que não ele.

Agora alteremos o tempo outra vez, depois de o termos acelerado para assim mostrar a angústia palpitante deste pai. Detenhamo-nos no momento em que Rodrigo recebe a pesada confirmação do seu pavor, e se dobra sobre uma maca de ferro fria numa sala branca sobre a cabecinha pequena e húmida de um menino. É ele, pensará. Enregelado, com a pele cinzenta e os lábios quase verdes e os olhos respeitosamente fechados por um par de dedos misericordiosos e anónimos. Rodrigo chora e o médico recua, sai da sala, encosta-se à parede do corredor silencioso e pela porta fechada ouve o soluçar daquele homem. Não sabe o nome da criança nem o nome do pai, e no entanto teve a responsabilidade de estragar a vida aos dois. Não conseguiu salvar o primeiro, causas puxam consequências e sem querer deixa morrer também o segundo. Põe as mãos nos bolsos da bata suada, lambe os lábios, baixa a cabeça. Interrompe aquele choro? Deixa-o a sós com o corpo? Que fazer? Despido de profissionalismo, o médico sente-se subitamente um homem.

Voltemos ao interior da sala para ver o que sucede ao mesmo tempo: assim se desdobra também o tempo à vontade do narrador e permite olhar para duas sequências de acontecimentos paralelos sem que o normal decorrer dos mesmos sofra qualquer inconveniência. Observemos agora o homem que beija a face do filho lavada em lágrimas gordas. Afaga-lhe o cabelo como sempre fez para o adormecer, lança-lhe palavras de conforto e inventa que culpa foi toda sua. Diz aquelas coisas que nunca disse por vergonha ou por inconveniência, todas aquelas coisas que nos ensinam a não dizer enquanto estamos vivos porque nos expõem a carne e as vísceras: que o ama muito, que sempre o amou, que o amará sempre, que é a pessoa mais importante da sua vida, que será dele sem o seu menino. Não percamos tempo, essa grandeza inestimável, a convidar lugares comuns. Eles estão lá, só são ditos nestas ocasiões e por ali os deixaremos. Despedimo-nos então deste pai com a certeza de que o tempo que teve não foi suficiente, e que o tempo que tem pela frente está a mais.

Afinal que é a vida senão a soma do que corre mal?


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