domingo, 14 de agosto de 2011

"Sete Pecados Mortais" - Ira




O soldado, rodeado de poeira e fumo e cinza e membros decepados, ergue aos céus trovejantes a espada inimiga e prepara-se para desferir o derradeiro golpe num miserável colega igual a si, só que com outra cor de camisola e um dialecto esquisito. À sua volta o tempo parece correr mais devagar. Aqui e ali os gritos de agonia dos desgraçados que nunca mais vão ver a esposa (ou seja, ficam cegos); o ruído dos canhões cuspindo fogo e pedaços de metal que cortam carne humana como, bem, como se fosse carne. É isso mesmo que ela é, apesar de nos esquecermos todos os dias.

O soldado olha para baixo. Não há misericórdia nos seus olhos. Não há medo. À sua volta o caos acontece, o Inferno de Dante sobre a Terra (só que com mais pancada e explosões, e menos pessoas nuas), a morte e a vida a dançarem uma com a outra sobre o fio de uma navalha tão bem afiada que lhes rompe as plantas dos pés aos bocadinhos. O soldado olha para aquele verme miserável à sua frente e sabe apenas uma coisa: mais do que voltar a casa, mais do que rever a mulher, mais do que conhecer a filha que não viu nascer, mais do que abraçar os pais, quer ferir aquela pessoa ali deitada. Feri-la com tamanha força e potência masculina que nem Deus poderá apagar da memória daquele pequeno arroto biológico o que significa perder-se na guerra. Que parte cortará primeiro? A língua, os braços, cada dedinho de cada vez, a pila? Decisões, decisões, e a espada brilhando à espera de atravessar tecidos e carnes e ossos com enorme brio profissional.

O soldado lá em baixo, estendido na lama e nos dejectos de outros soldados, reza o que pode e espera que lhe chegue para se salvar de um além infernal. Matou muita gente, magoou muita gente, e mal sabe que o seu deus nada fará para o salvar senão dar-lhe uma palmadinha nas costas, assim sim, meu filho, fizeste o que podias com o que tinhas, quem dera a muitos. Os budistas explicarão melhor esta justiça universal com aquela coisa do karma, mas este soldado não sabe nem quer saber de filosofias orientais. Está demasiado ocupado a morrer.

A espada cai. Finalmente, caramba. O tempo à sua volta continua a correr lenta, lenta, lenta, lentamente. A lâmina lá vai, atirada com toda a força e toda a raiva do soldado assassino. Matará aquele mísero ser humano como se fosse um animal; e é mesmo, já se viu que estes soldados devem pouco à cultura. Lá vai a espada, pimba, abriu-lhe o peito ao meio, o sangue jorra em golfadas desesperadas como se também ele sofresse. O soldado grita, mais por aceitação da dor e do destino do que pelo choque ao experienciar algo que finalmente lhe acontece, e para o qual tinha sido preparado de antemão. Se alguém te atirar ao chão e te matar, disseram-lhe, não te preocupes porque morres com honra.

Com honra como, pensava agora nos últimos momentos, enterrado em mijo e em esterco dos colegas e dos inimigos? Mesmo visto dali de perto o esterco e o mijo eram iguais. Não se distinguiam. A espada também é tão afiada como a sua. Coincidências, hum?

O soldado morre, o outro vai matar para outro lado. 


Texto do Autor e ilustração de Mariana Fernandes

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