terça-feira, 16 de agosto de 2011

Vinte e sete

Aviso: a história que se segue foi escrita no âmbito dos "creative promps" mas atingiu as 21 páginas e, portanto, o estatuto de "lombriga". O leitor ficou avisado. 





- De onde vem? – pergunto, olhando-o de frente. Perco a cerimónia: os meus olhos estão presos. O copo, transparente, amarelado, brilhante, responde-me resplandecente como uma mulher que pisca o olho do outro lado de um bar.

- Não sabemos – responde a mulher com maus modos e que tenta a todo o custo acelerar o processo.

- É fascinante... – digo. Esqueço a mulher; que me importa ela? Com aquela cara de cavalo e a farda a cheirar a mofo deseja a todo o custo dar por terminada a visita. Odeio isso. Odeio profissionais sem brio no que fazem, mesmo quando a sua actividade se resume a mostrar aos outros uma casa velha.

- Seguimos para a próxima sala? – diz ela, fingindo boa educação.

- Espere. Preciso de saber mais sobre o copo.

- Que copo?

O copo vazio está em cima de um monte de livro antigos e poeirentos empilhados sobre uma escrivaninha. A física dirá que está prestes a cair e a partir-se. Que amor súbito é este que sinto pelo objecto? Que vontade é esta de o enfiar no bolso da gabardine enquanto a mulher desprezível vira as costas? Não sou um ladrão. Nunca fui. Sê-lo-ei a partir de hoje?

- Item 3465B – diz a mulher, arrastando a voz com o entusiasmo de uma administrativa. Consulta um enorme dossier que carrega debaixo do braço e sentencia – Copo de origem desconhecida, datado do início do séc. XX. Valor calculado: insignificante.

- O que é “insignificante”? – pergunto.

- Insignificante é insignificante.

- Mas que significa isso traduzido em números? Um euro? Dois?

- Insignificante.

- Ouça, faça-me o obséquio de facilitar-nos a vida, por favor. Não tenho o dia todo; nem a senhora, a julgar pelo entusiasmo que a caracteriza.

Ela consegue um suspiro.

- Estes artigos não estão para venda.

- Porque não?

- Porque não.

A mulher mantém a cara de cavalo, estática. Uma profissional dos maus modos. Apetece-me esmurrá-la. Transformo-me lentamente num potencial ladrão e agressor de mulheres. Belo fado!

- Se tem um valor insignificante até deveria ser grátis.

- Não fazemos esse tipo de ofertas por aqui.

- Ouça –procuro por entre os bolsos da gabardine – Tenho aqui dez euros. Chega?

Os olhos de cavalo moribundo iluminam-se. O cheiro a notas acabadas de tirar de um bolso desperta nestes negociantes uma reacção automática.

- Penso que sim – responde a mulher. Meto-lhe as notas na mão, dobro-me sobre um dos armários velhos e atinjo o copo de vidro amarelo. Toco-lhe com os dedos: é de uma suavidade extrema. Agarro-o como se agarrasse uma mulher. Levo-o ao bolso, imediatamente, com um reflexo amedrontado: o copo é meu e não o quero perder nem partir. Não digo palavra à mulher negociante, que alisa as notas que lhe dei usando o tampo de uma mesa. Saio.

Perco algumas horas caminhando pela cidade. Paro num café, sento-me na esplanada, peço uma Coca-cola. Retiro o copo do bolso e coloco-o sobre a mesa. Há algo nele que resplandece e que desperta a minha curiosidade. Início do séc. XX? Parece-me mais velho. Não deveria ser mais valioso? Um copo de vidro destes sobrevive sem ser partido mais de cem anos e ninguém dá nada por ele. Perdido e poeirento no topo de uma pilha de livros rasgados. Triste sina.

Chego à conclusão que pertencerá a um conjunto maior, e daí valer quase nada. Retirado do seu contexto, é apenas um copo amarelo e velho; mas, ao imaginar uma mesa cheia de copos iguais, não deixo de sentir um arrepio agradável.

Chego também à conclusão de que é feio; aliás, horrível. Possui protuberâncias ritmadas a todo a superfície exterior, em forma de pequenos diamantes, o que lhe dá uma textura forte e torna-o fácil de segurar. Nem toda a gente iria gostar de tamanho pedaço de vidro amarelo. A mim, despertou-me tudo.

Pago a Coca-cola e desço a avenida. Não tenho que estar em casa senão às sete e meia, a tempo de preparar o jantar para a Marta. Paro num supermercado, compro um pacote de cajus, desço uma ruazita a comê-los. Ainda tenho o copo no bolso, bamboleando ao ritmo dos meus passos. De súbito sinto medo de o poder partir; tiro-o do bolso à pressa, agarro-o com ambas as mãos. Continuo a comer cajus mas agora com o copo amarelo na mão.

E questiono-me: é um copo normal ou haverá mais nele do que aquilo que parece? Compreendo subitamente que nunca me dediquei a aprender o mínimo que fosse sobre copos. Sempre os tomei como garantidos, como a água potável ou as gasolineiras nas auto-estradas. Gabo-me da minha curiosidade, da minha sede de conhecimento, da minha colecção de enciclopédias; e no fundo, que sei eu sobre este copo? Que sei eu sobre qualquer copo? Lição pessoal, aprendida hoje: aprender sobre copos não é menos importante que aprender sobre Locke, Sócrates ou a Revolução Francesa. Não devia ser. Que tipo de mundo é este em que vivemos, onde um copo é desconsiderado desta maneira? E quem sou eu para o desconsiderar? Viajou cem anos até chegar a mim, e meto-o no bolso, o mesmo bolso que recebe todos os dias um novo pacote de cajus. E o respeito?

Perco-me em divagações e dou comigo na Baixa. Numa ruazita minúscula, a caminho da estação de metro, encontro um toldo velho e amarelecido que encima uma montra quadrada e baça. É uma loja de antiguidades das que vemos nos filmes. Aposto comigo mesmo outro pacote de cajus em como, ao entrar, darei de caras com um velhote desdentado e curvado, que me receberá com bons modos e me apresentará um cachorro de porcelana para pôr no hall de entrada, ou uma escrivaninha da qual perdeu a chave. Entro.

Lá dentro, uma perpétua nuvem de pó e de velhice flutua no ar estagnado. Consigo sentir os anos de todos os armários e bugigangas caindo sobre o meu peito como uma bigorna cronológica, bem como o mesmo respeito que sentira pelo copo amarelo que continuo a agarrar com as duas mãos. Tudo o que ali está já cá estava antes de mim, e com certeza viverá depois de eu morrer. Para coroar este esticar elástico do tempo, nada melhor que ver o velhote surgindo atrás de uma secretária, pousando a revista de palavras cruzadas e atendendo o único cliente da manhã.

Em vez disso, uma mulher absolutamente lindíssima põe a cabeça de fora de uma porta lateral e cumprimenta-me:

- Já vai, sim?

Volta a desaparecer. Pasmo. Acabo de perder um pacote de cajus. A rapariga reaparece e posso agora vê-la melhor. Todos os seus traços são antíteses perfeitas do universo velho e raquítico que a rodeia. Como se fizesse de propósito! É morena, de olhos enormes mas equilibrados e harmoniosos, corpinho pequeno mas elegante, e um pescoço suavíssimo pronunciado pelo rabo de cavalo preso junto à nuca. Vem até mim com um sorriso.

- Com certeza à espera de um velhote – diz-me com humor.

- Sinceramente...

- É normal, não é o primeiro nem será o último.

- Que faz você num sítio destes?

- Num sítio destes?

Abro os braços e enquadro as pilhas de móveis e de velharias.

- Herança de família. Feliz ou infelizmente.

- Uma rapariga tão bonita como...

- Oh, poupe-me a conversa – afasta-me com um aceno de mão e um sorriso – Que deseja?

Estendo-lhe o copo amarelo e a rapariga olha-o e perde o sorriso. A sua face corada empalidece e um soluço prende-se-lhe na garganta. O efeito do copo nela é claríssimo.

- Está bem? – pergunto. Também eu fiquei assim quando o vi pela primeira vez: um misto de desarmante surpresa e vontade de o possuir. Sentirá o mesmo?

- Onde encontrou isso? – pergunta-me ela baixinho.

- Estavam a vender o recheio de um casarão enorme. Passei por lá por acaso e despertou-me a atenção. Queria que me dissesse o que pensa dele.

A rapariga olha-me nos olhos. Os seus lábios estão organizados numa circunferência surpreendida e, confesso, bastante atraente.

- O que penso dele....

- Disseram-me que não valia nada.

A rapariga ri alto e regressa logo ao seu estado de surpresa paralisada:

- Não valia nada...! Deixe-me... Espere.

Precipita-se pela porta lateral e desaparece. Ouço gavetas a serem abertas e fechadas desordenadamente. Vou até lá. É um pequeníssimo estúdio escurecido e cheio de dossiers, pastas velhas e papéis amontados. Ela pesquisa por entre uma gaveta aberta.

- Está tudo bem? – pergunto.

- O meu avô contava-me histórias em pequena – disse-me ela. Fiquei à espera de mais, mas nada chegou.

- Histórias.

- Sim, histórias – ela interrompe a sua procura frenética e senta-se numa cadeira velha, segurando religiosamente uma folha de papel antiquíssimo – e um dia disse-me: Aurora (é o meu nome). Aurora, um dia serás a proprietária da minha pequena loja. Vais cuidar dela e trata-la bem e quem sabe chegue um momento muito especial. Depois...

Estende-me o papel. Eu seguro-o com cuidado, levando à boca os dedos sujos do sal dos cajus. É um manuscrito em latim, com uma caligrafia deselegante. Mal consigo distinguir letras.

– Posso vê-lo?

Estendo-lhe o copo e ela agarra-o, fascinada. Roda-o calmamente entre os dedos. Eu continuo com o manuscrito na mão.

- Que significa isto? – pergunto.

- O seu copo é uma espécie de mito na minha infância – Aurora sorri – Cresci a ouvir falar sobre ele e sempre pensei que fosse só mais uma história. Mas...

- Mas?

- O meu avô mostrou-me esse manuscrito e explicou-me que o copo aí descrito é o Santo Graal.

Sai-me um riso aberto, automático.

- Que disparate! – exclamo. Aurora olha-me com aspereza – Desculpe se a ofendi, mas... O Santo Graal?

- A mim não me soa melhor. Consegue ler o que aí está?

- Não sei latim.

- Não é latim, é português arcaico. Tem algumas semelhanças com o português moderno. Aí ao canto, em letras garrafais, diz: “O copo de onde o Senhor deu a beber aos seus...” qualquer coisa.

- Isto é um manuscrito velho, a confirmação de uma lenda e nada mais.

- Fosse só isso... O meu avô explicou-me que esse copo não é só o Graal. Dizem que é o copo de onde Sócrates bebeu a cicuta, que o seu fundo foi a inspiração para o telescópio de Galileu, que Carlos Magno bebeu dele nos seus banquetes, que Picasso olhou através da sua superfície irregular e teve a ideia de pintar As Meninas de Avignon... Alguns manuscritos defendem até que foi esse copo que caiu sobre o cocuruto de Newton e não a maçã!

Um sentimento de incredulidade assola-me. Olho para Aurora com outros olhos, de outra perspectiva: a rapariga doce transformou-se numa tarada. Que delírios são estes? Porque os ouço?

- Isso é fascinante. Suponho que esteja interessada nele...? – pergunto; mas arrependo-me de seguida. Lucrar com uma lunática? Financiar os seus desvarios? Com que mérito vou recuperar os meus sete euros (ou, já que o copo é assim tão importante, lucrar com a transação) aproveitando-me de uma rapariga inocente? Tento corrigir-me – De qualquer forma...

- Interessada nele? –Aurora levanta-se de um salto – Se estou interessada no objecto de maior importância da História? Isso é pergunta que se faça? Acha-a legítima?

- Bem...

- Mesmo que quisesse não o poderia comprar – diz-me, sentando-se outra vez – É demasiado valioso.

- Não me custou por aí além...

- Porque o comprou a quem não sabia o que estava a vender. Dirija-se a um especialista e garanto-lhe que tem uma reforma generosa mais do que garantida.

- Ai sim? – olho para o copo nas mãos de Aurora e suspiro. Tentarei manter-me sério, como se acreditasse nela. Não há outra coisa a fazer; de qualquer forma, gostaria mesmo de ficar com o copo – Sabe então indicar-me algum colega que...

- Preferencialmente um museu. O Museu de Arte Mundial, junto ao rio. Conhece?

- Conheço.

- Pois bem. Mas pelo amor de deus não ande com o copo assim na mão, de um lado para o outro! – Aurora agarra num jornal velho e enrola o copo com ele. Estende-me o embrulho. Agradeço e saio da loja com a cabeça zonza, como se acabasse de visitar outra dimensão. Que loucura! Consumo meia dúzia de cajus de uma vez e desço a rua, com o copo embrulhado num jornal velho debaixo do braço. Procuro um relógio e encontro-o na parede de um barbeiro: são sete e quarenta. Marta estará a chegar a casa.  

Nos dias que se seguem observo o copo amarelo sobre a minha mesa do escritório e penso em Aurora. Há em toda esta história algo de fantástico. Como pode aquela vendedora de antiguidades ser tão honesta comigo? O que deveria ter feito era simples: fingir que o copo era desinteressante mas suficientemente valioso para mo comprar por uma quantia sumária e depois recuperar o seus investimento multiplicado por milhões num leilão de Arte. Isto, claro, se houvesse algo de credível em toda a história. Com o passar dos dias, Aurora- louca dá lugar dentro da minha cabeça a uma Aurora- actriz. Deduzo que se não se comportou como imaginei, os seus propósitos eram outros. O copo é, de facto, um horrendo pedaço de vidro amarelo do início do século e sem qualquer valor monetário; e Aurora, sabendo-o melhor que eu, inventara toda a história para se divertir à minha custa. Sinto quase pena de mim próprio, vítima da minha própria superioridade: enganado por uma jovem presa dentro de uma loja de antiguidades, e mortinha por se divertir!

Num desses dias quentes, que anunciam uma tempestade, desço a pé a Avenida e vou até à Baixa. Dou num instante com a ruazinha e com o toldo amarelecido. Como cajus, mastigando com violência. Tenho de me acalmar antes de entrar. Tomara na noite anterior a decisão de entrar na loja desvairado de felicidade, dizendo que estava milionário com a venda do copo e que desejava oferecer a Aurora uma módica quantia pela ajuda prestada. Ver-se-ia apanhada de surpresa, sem lugar por onde fugir. Tiraria o meu livro de cheques, preenchê-lo-ia com uma quantia significativa e estendê-lo-ia a Aurora. Sairia, agradecendo uma última vez. Crendo que me tinha realmente enganado, iria ao banco tentar levantar o dinheiro apenas para descobrir que o cheque não tinha cobertura. Isso iria ensiná-la a não brincar com as pessoas.

Orgulhoso do meu plano, mastigo uns últimos cajus e entro na loja de um salto.

- Aurora! – chamei; mas interrompo-me. A loja parece ter sido revirada do avesso e há papéis e vidros partidos no chão. Paralisado, corro os olhos até à porta lateral do pequeno escritório a tempo de ver surgiu um tipo entroncado, pesadão e de feições pouco simpáticas. Empalideço.

- Que deseja? – pergunta o entroncado com maus modos.

- Enganei-me na porta, desculpe – saio, fingindo andar distraído. Desço a rua a passo largo. Não quero correr já. Quando sinto que ultrapassei o ângulo de visão da montra da loja atiro-me para a frente a correr. Que faço? Deixo-me de cobardias, entro na loja e exijo saber onde está Aurora? Disparate; a loja foi assaltada, e o entroncado era provavelmente um dos responsáveis. Talvez nem esteja sozinho lá dentro. Chamo a polícia? Perco-me em reflexão quando sinto alguém atrás de mim. Olho de soslaio: o tipo entroncado desce a rua atrás de mim. Meto-me numa rua perpendicular e corro mais. Já sinto os pulmões a queimar, e relembro que Marta sempre me recomendara algum exercício físico. O entroncado vira a mesma esquina que eu e agora corre também; não há dúvida que me segue. Entro noutra rua, à esquerda, e logo de seguida num beco à direita. Enfio-me numa taverna de bairro, minúscula e escura. Vou para a mesa do fundo, sento-me, olho para a porta. Nada.

- Que vai ser? – pergunta-me uma rapariga de buço.

Sinto a minha pulsação acelerada ecoando dentro da cabeça.

- Uma coca-cola.

A rapariga traz-me uma coca-cola quente e uma tigelinha velha com tremoços. Sem ninguém ver, meto cinco cajus na boca e mastigo. Continuo a olhar para a porta, mas o entroncado não há meio de aparecer. Estou a salvo. Abro a coca-cola, provo-a. Caramba, está mesmo quente. Olho para a porta, vejo o entroncado entrar e a olhar em volta. Ele dá comigo no meu canto e os seus olhos prendem-se nos meus. Sinto-me a suar em bico. Levo a coca-cola à boca, sem saber mais que fazer. O entroncado atravessa a taverna e senta-se à minha frente. Tira um tremoço da tigelinha.

- Salgadinhos – diz ele.

Não digo nada. A rapariga de buço está a mirar-me do outro lado do balcão e já percebeu que se passa alguma coisa.

- Ouça, eu... – começo, mas o entroncado interrompe-me.

- O senhor conhece a Aurora? – pergunta-me ele.

- Qual Aurora?

- Entrou na loja aos gritos a chamar por uma Aurora.

- Ah, essa Aurora – simulo um sorriso – Só de vista, só de vista.

- Só de vista – o entroncado tenta intimidar-me e mete outro tremoço na boca. Do outro lado do balcão, a rapariga de buço está a trocar segredinhos com o dono da taverna, que me observa de soslaio.

- Eu e os meus companheiros estamos à procura da Aurora.

- Não lhe sei dizer nada, mal a conheço...

- É cliente da loja?

Pergunto-me porque estou a falar tanto. Devia ficar calado. Devia armar um escarcéu, fingir que o entroncado se está a meter comigo e chamar a atenção do dono da taverna, que continua a olhar para a minha mesa desconfiado.

- Só lá fui uma vez – respondo.

- E como sabe o nome dela?

- Dela quem?

- Você não brinque comigo – diz o entroncado, metendo-se sobre os cotovelos na mesa e aproximando a sua cara da minha – Se sabe onde ela está é boa altura de abrir a boca.

- Amigo, estou aqui a tomar uma bebida por isso faça o favor de me deixar sossegado – surpreendo-me a mim próprio. A responder na mesma moeda a uma provocação deste tipo!

O entroncado tranca os olhos nos meus, agarra-me na coca-cola e bebe-a de um trago. Pousa a lata sobre a mesa.

- O senhor está a meter-se em sarilhos.

- Não vejo porquê.

- Porque segundo sabemos, você foi o único cliente a aparecer pela loja no dia em que a Aurora desapareceu. O que é que lá foi fazer?

Empalideço. E agora?

- Você é da polícia? – pergunto.

- Posso ser.

- Ou é ou não é; e se não for não tenho de lhe responder a pergunta nenhuma. Aliás – procuro fazer sinal ao dono da taverna – vou é seguir caminho porque...

- Você não vai a lado nenhum.

- Cavalheiros – é o dono da taverna que se aproxima – tudo jóia?

- Tudo jóia – responde o entroncado, encostando-se para trás na cadeira – Eu e aqui o meu colega estávamos a trocar algumas ideias mas já vamos sair.

- Eu não sou seu colega – respondo eu, levantando-me bruscamente. Atrás do entroncado, dois clientes regulares olha-nos com maus modos e parecem preparar-se para intervir. Exactamente o que eu quero: armar confusão e conseguir sair dali. Lanço achas para a fogueira – O senhor só me está a incomodar com perguntas idiotas e eu não tenho que aturar isso.

O entroncado abre-se num sorriso. O dono da taverna percebe que há ali qualquer coisa:

- Vamos lá a ter calma aqui. Não quero mal entendidos no meu estabelecimento.

- Não há mal entendido nenhum – diz o entroncado. Percebeu o meu jogo e não vai entrar nele: levanta-se, arruma a cadeira educadamente, sai porta fora.

Suspiro. A postura dos clientes regulares descontrai-se e a rapariga de buço molha os lábios.

- Que raio foi isto? – pergunta o dono da taverna.

- Importa-se que faça um telefonema?

Uso o telefone. Marta atende.

- Estou? Quem fala?

- Marta, sou eu.

- Que número é este?

- Escuta-me. Preciso que me venhas buscar.

- Buscar? Onde?

- À Baixa.

- Não vou para a Baixa a esta hora de carro, estás doido. Apanha um táxi.

- Não apanho táxi nenhum. Vem me buscar por favor.

A urgência na minha voz produz em Marta a sensação de que não lhe estou a pedir uma boleia por qualquer razão.

- Que se passa? Podes falar?

Olho para o dono da taverna, que me mira desconfiado.

- Nem por isso.

- Onde estás? Que se passa?

- Sim, à Praça Central parece-me perfeito – veio-me à cabeça sem saber bem porquê; talvez por ser um local público, sempre com muita gente, seguro.

- Daqui a meia hora estou aí. Encontras-me?

- Até – despeço-me e desligo.

O beco está deserto. Vou devagarinho até à esquina e olho com cuidado para os dois lados da rua: nada. Desço a rua meio a correr, em direcção à Praça.

Deduzo: Aurora desapareceu. Isso não é facto consumado, mas suponho que o entroncado estaria à sua procura e se a tivesse raptado não viria atrás de mim a fazer-me perguntas. Se desapareceu e o entroncado a persegue é porque tem algo que ele deseja; e se ele me seguiu e sabe quem eu sou, é porque estava interessado em saber a minha ligação com Aurora. Pior; como saberia ele que eu era o cliente? A loja não parecia ter câmaras de vigilância. Dedução: trata-se de alguém com poder.

E a razão por que se interessaria por mim é óbvia: pensa que eu sei onde está Aurora, ou que tive algo que ver com o seu desaparecimento. E se pensa isso e é poderoso o suficiente para saber que eu entrei na loja e só conheci Aurora naquele dia, saberá também que a única coisa que nos liga é ele. O copo.

Subitamente a dedução parece ficção. O copo! Será o entroncado outro crente na fantasia partilhada por Aurora? Demasiado exagerado. Provavelmente Aurora deve dinheiro a alguém, ou envolveu-se com as pessoas erradas. Eu não tenho nada que ver com esta história, nem eu nem o copo.

Começa a chover: primeiro uma chuva miúda e pingada, depois uma carga de gotas gordíssimas. Puxo a gabardine para cima da cabeça. Chego à Praça Central e olho em volta. Estacionado junto à paragem dos autocarros, com os quatro piscas ligados, está o carro laranja de Marta. Dificilmente passaria despercebido. Corro até lá, olhando em volta.

Chego ao carro, entro para o lugar de passageiros e fecho a porta.

- Obrigado por teres vindo. Como vês, não queria apanhar chuva.

Olho para Marta à espera de reacção e em vez disso encontro-a a chorar. Atrás da sua orelha direita encontra-se o canudo de uma arma preta.

- Olhos para a frente – diz uma voz grossa no banco de trás. Levanto os braços estupidamente, a medo. Marta chora. Não quero provocar o dono da arma.

- Arranca – diz a voz; e reconheço-a. É o entroncado. Marta mal consegue ligar o carro. As mãos tremem-lhe e começa a choramingar.

- Arranca! – repete a voz.

- Ela não consegue – digo eu – Deixe-me guiar.

- Quieto.

- Eu não vou fazer nada, só conduzir. Por favor afaste a arma da cabeça da rapariga – tento manter um tom casual, não quero que Marta me veja em pânico. Trocamos de lugar. Ela encolhe-se no banco do passageiro e olha para mim de lado. Como dizer-lhe para não se preocupar? Como dizer que vai ficar tudo bem?

- Arranca.

- Para onde?

- Arranca, foi o que eu disse.

- Estou no meio da Praça, preciso de saber se viro já aqui à esquerda ou se vou em frente.

- E eu preciso que te cales e faças o que eu digo – responde a voz – Arranca.

Sinto o canudo da arma na minha orelha e tenho uma vontade esquisita de comer cajus. É o que faço quando estou nervoso. Arranco.

- Leva-me a vossa casa – diz a voz.

Mordo o lábio.

- A nossa casa – digo eu, e Marta recomeça a chorar.

- Sabemos onde moram – diz-me a voz – Por isso não inventes já alguma estratégica para fugir. Se tudo correr como eu quiser podem ir jantar sossegados.

A viagem é feita em silêncio. Reparo, apesar da chuva, que um carro negro nos segue constantemente. Conduzo devagar com a desculpa da chuva mas aproveito para reflectir. Acredito plenamente que as situações de maior stress pedem uma análise cuidada. Estamos a lidar com um grupo perigoso e armado. Com certeza acham mesmo que eu sei onde está Aurora; mas porquê fazer de nós dois reféns? Porquê a ida para minha casa? E mais uma vez a resposta que nego com todas as minhas forças reaparece na minha mente: o copo. Correção: sabem onde está Aurora. Encontraram-na, e ela contou-lhes que sou eu quem ficou com o copo. É o copo que desejam e mais nada. Há que conduzir até casa, dar-lhes o copo e esperar que nos deixem em paz. Mas algo me diz que isso não vai acontecer. Marta talvez não, mas eu vi a cara do entroncado. Há testemunhas na taverna. Se...

Uma paragem brusca do carro à minha frente obriga-me a travar.

- Que houve? –murmuro, impaciente. O canudo da arma toca-me na nuca.

- Contorna – diz-me a voz. Preparo-me para virar o volante quando uma mancha se materializa ao lado da minha janela, escondida pela chuva. Batem-me no vidro. Consigo distinguir um uniforme de polícia por entre o vidro embaciado. Sinto a arma a recuar.

- Despacha-o – diz-me o entroncado. Abro a janela.

- Senhor guarda – digo eu, suspirando.

- Houve um acidente mais ali à frente e estamos a pedir às pessoas que desviem pela Rua 4.

- Oh, isso é muito aborrecido – digo eu ao polícia. O policia fita-me:

- É a vida. Siga.

Vou arrancar mas o polícia mete a cabeça dentro do carro e olha para Marta.

- Está tudo bem, minha senhora?

Marta chora desconsoladamente.

- Morreu-lhe o avô, senhor guarda – diz o entroncado atrás de mim, ocupando o intervalo entre os dois bancos da frente.

- Ai foi? – pergunta-me o polícia. Leu algo na minha expressão. Tento escondê-lo? Não tento?

- Levou um tiro – sai-me.

- Era taxista e estava em serviço – intervém o entroncado atrás de mim - Um caso terrível. Infelizmente não é  único.

- Acontece muito disso hoje em dia, é verdade – pausa. O polícia não para de olhar para mim – Portanto, de certeza que está tudo bem – é quase uma pergunta.

Com os lábios digo: “Não”. Com a voz, digo:

- Está tudo, senhor guarda.

-Importa-se de sair do veículo? – o polícia percebeu. Eu percebo que percebeu. Preparo-me para sair mas sinto o canudo da arma no meu cotovelo, escondido dos olhares do polícia. Num segundo apenas, penso: ele não me vai dar um tiro. Não pode. Houve um acidente, haverá mais agentes além deste polícia sinaleiro. Vou sair. Vou sair. Saio? Saio.

Tiro o cinto no momento em que um carro negro passa por nós e trava mesmo atrás do polícia. Ele vira-se. Outros agentes aproximam-se, gritando ao carro negro que se imobilize. O carro acelera, os pneus patinam no meio das possas de chuva. O polícia sinaleiro afasta-se e um segundo depois tenho a arma apontada à cabeça.

- Arranca.

- Não arranco – engulo em seco. Ao meu lado, Marta solta um grito. Tem a arma apontada ao ombro. O polícia desapareceu no meio da chuva.

- Vai dar uma curva – digo eu. Não sou asneirento, não o quero deixar furioso, apenas provocá-lo para que faça exactamente o que estou à espera: aponta-me a arma, afastando-a da Marta. Levo a mão ao manípulo da porta e atiro-me para fora do carro o mais rapidamente possível.

A chuva atinge-me e ouço um grito de Marta. Começo a correr, e espero que ela perceba que é suposto fazer o mesmo. O entroncado sai do carro, esconde a mão armada atrás das costas e vem atrás de mim.

Procuro um polícia. O carro negro entretanto acelerara dali para fora, seguido por um carro de polícia. A alguns metros, dois carros chocaram e três pessoas assinam documentos debaixo de dois guarda-chuvas. O polícia sinaleiro está lá. Corro rua abaixo. Quero gritar. Grito? Caramba, grito mesmo:

- Ei! – berro. O polícia olha em volta, à procura da origem do ruído. Sou empurrado para o meu lado direito, desapareço atrás de um carro e vou ao chão. O entroncado agarra-me com uma mão grossa e puxa-me pela gabardine.

- Muito engraçado – diz-me ele, arrastando-me. Contorna o carro parado e coloca-nos fora do ângulo de visão do polícia, que entretanto se concentra outra vez na papelada.

Sou enfiado dentro do carro, encharcado, mas constato com felicidade que Marta desapareceu. O entroncado entra no banco de passageiros, fecha a porta atrás de si e atira-me a arma contra o nariz. Uma dor incrível e um monte de sangue escorre-me até à boca. Está quente.

- Arranca! – rosna ele. Arranco, agora de nariz partido. Continuo com vontade de comer cajus.

O desvio pela Rua 4 atrasa-nos. Tenho de dar uma volta enorme pela cidade. Chego finalmente à minha rua e reparo que o carro preto está lá estacionado, à espera. Estaciono num lugar vago.

- Sai.

O entroncado caminha atrás de mim, perto o suficiente para sentir a arma apontada às minhas costas. Do carro negro não sai ninguém. Abro a porta da rua, subimos as escadas como dois gémeos siameses. Preparamo-nos para chegar ao meu patamar quando um cão desce as escadas e passa por nós a correr. É o cão do meu vizinho de cima. O cão imobiliza-se, olha para nós e começa a rosnar.

- Ena, cá nos encontramos! – diz-me o vizinho, descendo as escadas. É médico, um tipo novo e sempre bem vestido – Boris, tem calma!

Boris continua a rosnar para o homem entroncado. Ele pressiona a arma contra as minhas costas e nem chego a parar a subida.

- Boas tardes, até logo! – digo eu.

- Tudo bem com a Marta?

Se está tudo bem com a Marta? Não faço a mais pequena ideia.

- Claro, tudo fino – respondo. Boris e o dono continuam a descida e eu e o entroncado chegamos ao meu patamar. Abro a porta. Entramos.

Alguém está na cozinha a lavar a louça. Alguém ligou a televisão. Alguém abriu a janela para arejar a casa, e por momentos temo que Marta tenha sido ingénua o suficiente para regressar a casa; mas mesmo que o fizesse, com certeza não se iria pôr a lavar a louça...

Marta aparece vinda do quarto. Esteve a chorar. Vem na esperança de que seja eu e eu só. Vê-me, a mim e ao entroncado, e abre a boca para gritar. O entroncado pede-lhe silêncio com um dedo nos lábios.

- Marta? Quem é? – pergunta uma voz vinda da cozinha. Reconheço-a. Olho para Marta, incrédulo. Porque estaria a mãe dela na cozinha?

 - Vai buscar o copo – diz-me o entroncado.

- Qual copo? – pergunto automaticamente, tentando ganhar tempo. As minhas suspeitas confirmam-se e deixo de saber se suo e tremo por ter uma arma apontada às minhas costas ou porque um copo amarelo me colocou nesta situação. De que será capaz um louco como este?

A mãe de Marta surge vinda da cozinha, limpando as mãos a um pano. É uma mulher desinteressante e enrugada, com a personalidade de uma dona de casa frustrada que sente sempre que ninguém lava, esfrega, cozinha ou vai às compras tão eficientemente como ela. O seu marido e pai de Marta vem atrás dela, um indivíduo simpático e gordo que anda sempre a sorrir, apesar da dentição irregular e de um hálito pavoroso. O pai de Marta perde o sorriso e a mãe de Marta imobiliza-se ao ver o nosso “convidado”.

- Que se passa? – pergunta a mãe de Marta – Quem é este cavalheiro?

Quem é este cavalheiro, pergunta ela! O entroncado decide abrir o jogo. Com um ligeiro empurrão, afasta-me de si e levanta a arma. Marta grita, o seu pai perde a cor e a sua mãe deixa o pano cair ao chão.

- O copo – diz-me o entroncado.

- Não sei que copo é esse, já disse – insisto. O copo está em cima da minha secretária, no meu pequeno escritório. Vou fingir que não sei onde está, que não lhe dou a mínima importância e que por isso não sei o ser verdadeiro valor. Logo, não sou nenhuma ameaça para o entroncado. Ele poderá levá-lo e deixar-me em paz.

O entroncado retira um telemóvel do bolso, carrega num botão e diz:

- Sou eu. Sobe.

Desliga-o. Pouco depois entra um segundo entroncado, mais baixo mas mais musculado. É com certeza um dos seus companheiros do carro negro.

- Vigia-os – diz o primeiro entroncado. O segundo entroncado leva-nos para a sala, indica-nos o sofá e as cadeiras, e encosta-se a uma enorme coluna de som. Olho em volta: o pai e a mãe de Marta estão de mão dada, impávidos e hirtos. Marta choraminga a um canto, cansada de chorar. Lá dentro, algures, o entroncado parte, busca e remexe no quarto de Marta. Vejo-o no corredor: entrou no meu quarto. Algo se parte, umas gavetas são abertas. Vejo-o no corredor outra vez: entra na meu escritório. É agora, penso. Tudo vai acabar.

O entroncado desce o corredor e chega à sala, mas vem de mãos vazias. Levanta a arma na minha direcção e agora percebo que fala a sério. Comporta-se com ma frustração interior que lhe dilata as veias da testa.

- Só vou perguntar uma vez. Onde está o copo?

- Mas não estava... – começo; mas a mãe de Marta interrompe-me.

- Qual copo? – pergunta ela.

- Um copo amarelo – responde o entroncado.

- Há vários cá em casa. Lavei pelo menos três – responde ela. Consigo imaginá-la a entrar no meu escritório, bisbilhoteira como é sua tradição, agarrando no copo amarelo e levando-o para lavar.

O entroncado desce o corredor, entra na cozinha, regressa com três copos amarelos nas mãos. Um deles é  meu copo, é o copo. Coloca-os em cima da mesa e volta a erguer a arma.

- Qual deles? – pergunta-me.

- Já disse que não sei de que copo está a falar – respondo.

- Pelo amor de deus, leve a porcaria dos copos e deixe-nos em paz! – diz o pai de Marta.

- Vamos manter a calma – diz a mãe de Marta, respirando fundo. Olha para mim – Parece-me que ficou com um copo que pertence a estes senhores. Qual deles é?

- Você saberá melhor que eu – respondo automaticamente – Foi a senhora que entrou no meu escritório e o levou para lavar – tenho de manter a calma a todo o custo, mas a sua provocação irritou-me.

- Vocês não precisam de nos fazer mal – quase grita Marta – Vão-se embora. Se descerem a rua e virarem logo à esquerda dão com a Avenida junto ao Rio, ao pé do Café Cipreste. A partir daí ninguém vos apanha. Por favor. Levem os copos e vão.

- Vai buscá-la – diz o primeiro entroncado ao segundo, que se desencosta da coluna, desaparece pela porta da casa e regressa um minuto depois. À sua frente caminha uma rapariga morena e pequena, assustada e pálida: é Aurora. O entroncado agarra em Aurora pelo braço e trá-la para o meio da sala.

- Quem tinha o copo? – pergunta ele. Aurora choraminga – Quem tinha o copo?! – Aurora não consegue falar. Tenho de intervir:

- Era eu – digo. O entroncado olha para mim.

- Qual destes copos é o que os interessa? – pergunta.

- Larguem a rapariga – peço.

- Qual destes copos é o que nos interessa! – grita o entroncado. Agita Aurora, encosta a arma à cabeça dela. Estou cansado de ver armas serem apontadas de um lado para o outro. Deixam-me doente.

Paro durante uns segundos para reflectir. A lógica  é clara, penso: este grupo pretende apoderar-se do copo por adivinhar as suas propriedades quase sobrenaturais. Ao possuir um copo que, por definição, faz História quase sem querer, o grupo tem nas suas mãos um verdadeiro catalisador de acontecimentos, o combustível imprescindível a quem deseje mudar a História. E, muito provavelmente, para seu belo proveito. A julgar pela sua atitude são criminosos profissionais, perigosamente perto de atingir o seu objectivo. Nem eu nem Marta nem os seus pais sairemos vivos desta sala. Essa certeza forma-se com a clareza que só uma situação-limite impõe a um organismo cheio de adrenalina. Parece-me claro que, apesar de profissionais, não sabem o aspecto do copo. Estariam com certeza à espera que eu confessasse, ou Aurora. Ela parece demasiado nervosa para falar, e eu tenho nas minhas mãos uma decisão. Tomo-a rapidamente:

- Nenhum deles – respondo – Eu vendi o copo verdadeiro.

Aurora olha-me, surpreendida, por entre os cabelos caídos. O entroncado abre muito os olhos. Está furioso. Vai matar-nos, com certeza; ou então sai porta fora a buscar o copo a Museu. Sim, estou a jogar a minha vida e a vida de outras quatro pessoas; mas por agora tento é afastar o entroncado, tirá-lo de minha casa.

- Há dois dias atrás fui ao Museu de Arte Mundial, junto ao rio, e vendi-o – completo.

- Ele mente – diz o segundo entroncado. O primeiro entroncado lê-me a expressão, ofegante. Furioso, agarra numa almofada e na arma.

- Vamos –empurra Aurora pelo corredor. Encosta a arma à almofada. O segundo entroncado esboça um sorriso e, com o pé, liga a aparelhagem e as colunas atrás de si. A estação favorita de Marta soa, despreocupada e com o volume quase no máximo. O entroncado desaparece pelo corredor. Aurora grita. Fecho os olhos.

Das colunas vem um trepidar electrónico característico: titiri, titiri, titiri... Abro os olhos. O segundo entroncado já não sorri. O primeiro entroncado regressa à sala, com a almofada numa mãe a arma na outra. Olham para nós. Olho em volta. Quem tem um telemóvel? Que acabou de assinar a nossa sentença de morte?

O segundo entroncado desliga a aparelhagem e as colunas. O primeiro entroncado caminha até nós num passo de predador.

- Quem tem o telemóvel?

Por alguma razão olha directamente para Marta. Ela começa a chorar e eu compreendo: é ela.

O entroncado desce sobre Marta no mesmo momento em que todas as outras figuras na sala se movem: o pai de Marta tenta atingir o primeiro entroncado e proteger a filha; a mãe de Marta levanta-se, encosta-se a uma parede e grita; o segundo entroncado procura tirar uma arma no coldre e, ao mesmo tempo, é atingido na cabeça por um prato em movimento. Olho: é Aurora. Atinge-o na cabeça e ele cai sobre as próprias pernas, inconsciente. O entroncado berra com Marta, puxa-a para si, tenta tirar-lhe o telemóvel que a rapariga segura a todo o custo nas mãos pequenas. Atiro-me para a frente, chego à mesa. Isto acaba agora.

- Oi! – chamo. A confusão acaba. O entroncado vira a cabeça e vê-me, de copo na mão, de braço levantado. Não é parvo. Percebe tudo.

- Larga-o – diz-me ele.

- Podes crer que o largo mesmo se não tirares as mãos de cima dela.  

É o jogo da corda: cada um puxa para seu lado. Qual vai ser o primeiro a ceder?

- Deixe de ser parvo, ele tem uma arma apontada à cabeça da minha filha! – resmunga o pai de Marta.

- Parte-o – diz-me Marta – Parte-o! – o entroncado puxa-a pelos cabelos, amachuca-os, pressiona a arma contra a bochecha dela mas Marta não desiste – Parte-o!

Ao longe, ouço-as: as sirenes. O resultado de um espectacular sangue frio por parte de Marta. Agora resta-me não estragar tudo. Resta-me ser a antítese do herói: não tentar nada arriscado. Ganhar tempo. Ganhar tempo!

De súbito, um tiro: num momento olho em volta, à procura de ver Marta desfeita no chão, um grito longo e agudo da sua mãe. Mas não: todos os olhos da sala caem em mim. O entroncado larga Marta, caminha na minha direcção e por alguma razão não me consigo mexer. Ele leva-o: o copo. Arranca-o da minha mão, sai correndo da casa. Caio para trás, sobre uma cadeira, e levo as mãos ao peito. Quente. Molhado. Tudo está lento, mais lento, muito lento: Aurora, incrédula, ainda com o prato na mão. Marta a cair sobre mim, chorando desesperada. A mãe de Marta olhando-me estupefacta. O pai de Marta aproximando-se, tirando-me a camisa com um rasgão, olhando a ferida. Não há som. As sirenes desaparecem, e os gritos, e os passos apressados. Não há nada senão sombras: a de Aurora, a de Marta, a dos seus pais, a sombra de dois copos vazios e amarelos sobre a mesa.

Muitos minutos, muitas horas, um espaço escuro e um tempo infinito.

Depois, um som: um gotejar, um pi pi pi electrónico, um burburinho respeitador. Abro os olhos. Que é feito de mim?

Depressa os sinais se transformam em certezas: estou deitado numa cama de hospital. Ao meu lado está Marta, com papos debaixo dos olhos e um sorriso apagado mas sincero.

- Acordaste – diz ela.

- Evidentemente – respondo, sem saber o que dizer.

- Ias morrendo.

- Foi por pouco?

- Foi por pouco.

- Um tiro – digo a mim mesmo em voz alta.

- No ombro, quase junto ao coração. Tiveste sorte, a polícia estava mesmo a chegar.

- E depois?

- Depois de quê?

- Depois de cair.  

- Não te lembras de nada?

- Só do tiro. Agora percebo que foi um tiro.

- Ficaste com os olhos abertos e baços. Juro-te que pensei... – ela morde o lábio inferior e agarra-me na mão com mais força. Sinto a minha consciência espalhar-se pelo meu corpo e a sua pele junto à minha – A polícia e o INEM chegaram logo. Foste assistido. Trouxeram-te para aqui, foste operado durante, sei lá, umas oito horas. Até a minha mãe não foi dormir a casa. Ficou cá comigo. O meu pai foi à esquadra prestar declarações. Depois virá um agente para falar contigo, mas só quando estiveres melhor.

- Suponho que o entroncado tenha fugido.

- Supões bem.

- E levou o copo.

- Levou.

Sorrio.

- De que te rir? – pergunta-me ela.

- Nada – respondo. Consigo levantar um braço e dou-lhe a minha mão. Ficamos a olhar-nos muito tempo.

Horas depois tenho outra visita: é Aurora. Tem um enorme adesivo na testa e cara de quem não dorme há duas semanas. No entanto, assim como Marta, sorri. Porque me vê vivo ou porque afinal estamos todos vivos e podemos sorrir uns para os outros. Aproxima-se e senta-se na cadeira ao lado da minha cama.

- Julgo que me deves algumas explicações.

-  Não lhes falei de ti em nenhuma altura – diz-me, muito séria – Eles sabiam. Não sei como, mas sabiam. Tinham a loja vigiada; ou então vigiavam o copo e chegaram a ti.  

- É o mais provável – recordo-me que sabiam onde morava, sabiam quem era Marta, e de repente volto a ficar assustado.

- De qualquer forma – diz Aurora, não contendo um sorriso – Não estava à espera daquela manobra.

- Qual manobra? – pergunto.

Aurora abre a mala e retira um copo amarelo: o copo amarelo.

- Engano honesto – brinco.

- Foi de propósito?

- Claro que foi! – digo, heroico. E foi mesmo; mas por alguma razão sinto a necessidade de brincar ao lado de Aurora, de lhe parecer engraçado, de a fazer rir.

- Continua a ser teu – diz Aurora, estendendo-me o copo. Afasto-o com a mão.

- É para ti.

Aurora endireita-se na cadeira.

- Impossível. Não posso aceitar, eu...

- Quem quer que ache que tem o copo verdadeiro, acha que tem o copo verdadeiro. Poderá desconfiar, e tu poderás correr perigo outra vez; por isso, o que tu fazes com o copo é lá contigo. Esconde-o, vende-o, parte-o e deita-o fora. É como quiseres.

Não tenho a coragem de lhe perguntar se acredita mesmo no que me tinha contado sobre ele; de qualquer forma isso já não importa. Aurora segura o copo com as mãos e roda-o devagar sobre os dedos: é para ela uma relíquia divina, um símbolo de uma infância passada e de um avô velhote e desdentado que viveu numa velha loja de antiguidades e que lhe contou histórias para adormecer. Bem vistas as coisas, penso, o copo sempre mudou a história de alguém....

Ainda assim, a curiosidade e o fascínio que despertava em mim desapareceram. É só um copo.


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