segunda-feira, 8 de agosto de 2011

"Sete Pecados Mortais" - Orgulho


Primeira história da série "Sete Pecados Mortais", apresentada anteriormente aqui no blog. Haverá uma história nova por dia até à próxima segunda-feira, dia 15 . 




Um dia o Homem chegou à conclusão que o Todo devia substituir cada Um, que as coisas de um deviam ser de todos e que as hierarquias, por mais úteis que fossem no dia-a-dia, eram uma construção só levada a sério por aqueles que queriam a todo o custo estar acima dos outros.

A transformação ocorreu à medida que um interesse crescente em todo o tipo de religiões, crenças temporárias ou crónicas, pseudo-ciências e outras interpretações do mundo, forçadas para vender livros e programas televisivos, conduziu a um aumento significativo da consciência universal. De súbito, as guerras davam dinheiro mas eram episódios violentos e evitáveis. Os grandes senhores do Capital liam os livros de auto-ajuda de um fôlego, choravam toda a noite e na manhã seguinte mandavam cancelar todos os testes médicos a meninos africanos, e toda a produção de mísseis e minas e ogivas, e todos os confrontos armados entre facções bilateralmente opostas, e proclamavam que sentiam dentro de si um gosto especial pelos outros.

O exemplo dos grandes foi seguido pelos pequenos, é para isso aliás que eles lá estão: deixarem-se influenciar. Em poucos anos, as pessoas começaram a oferecer os seus lugares a pessoas mais velhas no autocarro, e a dar de comer a mendigos, e a dar guarida a cães abandonados, e a oferecer um beijo e um abraço a quem encontravam chorando na rua. As crianças partilhavam os brinquedos nos recreios das escolas. Os políticos acabaram com os partidos, porque apesar de algumas divergências ideológicas e economicistas, perceberam que o ideal mesmo era lutar pelo bem comum, e fazer pelos outros o que gostariam que fizessem por eles.

Em poucos anos o mundo deixou de cuspir poeiras poluentes e de soltar gritos de dor, e as gargalhadas enchiam as ruas limpas, e as crianças não mais iam para a escola com frio ou com o estômago vazio. Uma nova Era começou no mundo, uma que nunca tinha sido experimentada, e que pelo menos de início sabia mesmo muito bem. Era saborosa a sensação de universalidade, de fronteiras abertas e de ventos de mudança, num planeta onde pela primeira vez o umbigo de cada um era substituído pelo umbigo de todos os outros.

Até que um dia uma mulher insistiu para que um homem mais velho se sentasse no seu lugar no metropolitano, ele recusou sorrindo, argumentando que devia ser cavalheiro e não aproveitar-se da bondade alheia, e as coisas começaram a correr menos bem. A senhora insistiu, porque, lembremo-nos, o importante é fazer pelos outros e, naquele contexto temporal e espacial, fazer pelos outros significava fazer por aquele senhor de pé e mais velho. O senhor insistiu, porque, lembremo-nos, o importante é fazer pelos outros e, naquele contexto temporal e espacial, fazer pelos outros significava fazer por aquela senhora simpática e amorosa, aliás de beleza bastante significativa.

Um terceiro interveniente interveio (pois claro que interveio, se era interveniente); ofereceu o seu lugar quer ao homem quer à mulher, argumentando que podiam dividi-lo em coerência com a nova mentalidade de partilha universal. A mulher já sorria com esforço, um pouco cansada pela forma como a sua boa vontade estava a ser ultrapassada pela boa vontade de outros, e disse que estava absolutamente fora de questão tal coisa, os dois senhores que se sentassem nos respectivos lugares porque ela ia sair dali a duas paragens.

O senhor mais velho agradeceu ao terceiro interveniente com uma pequena vénia, quase chorou perante a boa vontade alheia, mas disse que não senhor, não podia ser, afinal que mundo seria aquele se aceitasse o lugar e, dessa forma, prejudicasse o bem-estar de um homem tão simpático até ao fim da viagem.

Entrou um quarto interveniente na conversa, levantando-se do lugar e ofertando-o aos outros três, e de um momento para o outro todos os passageiros do metro estavam de pé, falando uns por cima dos outros, oferecendo desesperadamente os seus lugares ao vizinho do lado. Assim seguiram a viagem, o metro parou, abriram-se as portas e uns aproximaram-se para sair. Outros vinham a entrar, passas tu, passo eu, passarmos os dois não dá que não cabemos. Cavalheirismo para lá, cavalheirismo para cá, o metro parou de portas abertas e a circulação foi interrompida. Nenhum passageiro queria entrar, convidando os outros a saírem primeiro; e vice-versa, como mandava o novo imperativo moral.

O metro parou, e a confusão espalhou-se às ruas e às casas. Ninguém arredava pé de cruzamentos, passadeiras, lojas, espaços verdes, espaços públicos ou espaços privados, todos com medo de, passando primeiro, prejudicar de forma violenta a vida de outrem e, com isso, levar a sociedade, e por uma segunda vez, a essa perigosa ideologia egoísta que sempre reinara desde o início dos tempos.

A cidade parou. Os governantes combinaram reunir-se na Assembleia com o intuído de, quem sabe, resolver a situação; mas depois de sete horas de pára-arranca à porta da sala, com cada governante oferecendo a passagem aos outros todos, desistiram e foram para casa.

O país parou. Cada governante procurava a todo o custo encontrar uma solução, mas não queria de todo ultrapassar em importância e inteligência os seus colegas de governação e, por isso, se sequer se atreviam a perder tempo pensando no assunto, guardavam a sete chaves as suas conclusões de maneira a evitar disputas futuras.

E entre fronteiras acontecia o mesmo, à medida que os produtos importados não entravam nos países e ofereciam passagem aos produtos exportados. Entra fruta, sai vestuário, entra vinho, saem vidraças, entra artesanato tradicional, sai carregamentos de porcos e bovinos vivos. Entra não, entraria; sai não, sairia. Filas enormes de trânsito à medida que as horas passam.

O mundo parou, e duas semanas depois do início do acidente os governantes dos vários países decidiram reunir-se numa reunião extraordinária a fim de discutir a melhor forma de resolver a situação. Cada um entrou por sua pessoal na sala de reuniões, e todos ao mesmo tempo ao som de um toque de campainha, para que nenhum entrasse primeiro que outro e, assim, desrespeitar a ordem de trabalhos.

A princípio nenhum queria falar primeiro, depois lá se fez um sorteio. Começou o líder de uma economia emergente: Meus senhores, primeiro que tudo desejo-vos uma excelente tarde. Se precisarem de água fresca, rebuçados para a garganta, papel e caneta, por favor não hesitem e pedir-me. Nem a mim, disseram logo todos os outros governantes, começando a tirar de suas maças canetas, papéis, o seu portátil, dossiers de papelada vária, pastilhas de mentol. Por cima da mesa trocaram os bens  uns dos outros, cada um atirando os seus objectos para cima dos outros e cada um fazendo o melhor que podia para não tocar acidentalmente em nenhum dos objectos alheios.

Os ânimos exaltaram-se. Um dos governantes, mais irascível, quase chamou nomes a um outro governante que, ofendido, procurou acalmar-se. Todos os outros governantes olharam-se mutuamente, surpreendidos por tamanha falta de decoro. O governante irascível corou, envergonhado, pediu desculpas, e logo todos os companheiros iniciaram um confuso e complexo sistema de pedidos de desculpa. De súbito todos os objectos da sala caíam sobre o governante irascível que, mal se podendo controlar, gritava: Não aceito, recuso-me a aceitar, isto é vosso, não meu!

Aceita!, gritou um dos colegas, e como que se uma ordem superior a todos chegasse ao mesmo tempo, todos os governantes saltaram as mesas e as cadeiras e desceram violentamente sobre o governante irascível, enfiando-lhe papéis e canetas nos bolsos, pastilhas e rebuçados na boca, casacos, calças, sapatos, chaves de carros, telemóveis. O governante irascível mal conseguia respirar, à medida que o enchiam de tralha e os colegas, muitos deles semi nus e de malas vazias, gritavam: Aceita, aceita!

O mundo estava parado. Durante sete semanas, os governantes, mal nutridos e estafados, discutiram quem se deveria vestir primeiro, quem deveria ficar a descansar enquanto os outros arrumavam a sala, quem deveria sair primeiro da reunião e regressar ao seu país de origem.

Sem importações, nem exportações, nem negócios bem sucedidos, a economia morreu, os supermercados e lojas estavam vazias, e ninguém saia de casa. Tinham medo de passar à frente de alguém, prejudicá-los, sabe-se lá, uma pessoa tem de pensar primeiro nos outros e só depois em si. E num desses dias, numa rua comum de um país comum, onde as lojas estavam sem nada nas montras e cheias de populares a quererem dar dinheiro ao proprietário, uma mulher aproveitou a confusão para enfiar os vinte euros que oferecia na carteira e sair da loja calma e resolutamente, cansada de querer ser generosa e não a deixarem. Do seu egoísmo sanguinário não se registou nada nos livros de História, até porque, entre os autores, uma disputa acesa entre quem deveria escrever cada um dos capítulos dificultava a produção do manuscrito final. Se o mundo voltou ao seu normal funcionamento é coisa que me ultrapassa; aliás, recuso-me, de todo a terminar este relato. Não quero de todo prejudicar quem vier depois de mim a querer contar por suas próprias palavras a forma como morreu o mundo. 

Texto do Autor e ilustração de Mariana Fernandes.

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