quarta-feira, 10 de agosto de 2011

"Sete Pecados Mortais" - Gula




- Se não fosses tão gorda o que é que gostarias de ser? – perguntava a irmã mais nova à irmã mais velha, uma gloriosa e esférica criatura com borbulhas de adolescente e a auto-confiança de um pedaço de soja. Os pais reprimiam-lhe a gracinha, mas nada a impedia de rir à gargalhada e agitar-se na cadeira da sala de jantar, certificando-se de que treinava todos os movimentos de agitar o corpinho danone com que uma sorte biológica e uma dieta à base de hambúrgueres, batatas fritas e refrigerantes gelados lhe havia presenteado.

- As pessoas ligam mais à minha presonalidade – insistiu a irmã, mastigando brócolos.
- Claro que sim, claro que sim – respondia a outra, com cuidado para não se asfixiar no próprio riso.
- Podes comer a tua pizza sem importunar a tua irmã? – perguntou a mãe, maternalmente, mal sabendo que a sua entoação deixava transparecer demasiado que concordava com a filha mais magra.
- Poderia, se as banhas dela não me incomodassem tanto durante a noite quando muda de posição na cama – a irmã magra abriu os braços como que a simbolizar uma enorme quantidade de pneus abdominais e oscilou na cadeira – Blomp, blomp, blomp…
- Oh, pára com isso! – insistiu a mãe. A irmã mais gorda choramingava e o pai, interessadíssimo na conversa, tentava a todo o custo ver a repetição dos melhores lances do jogo do Benfica.

Num mundo como este, onde a tecnologia apresenta maravilhas para a vida de cada um, resta-nos escolher as que mais nos favorecem. Como aquela que, ainda nem há cinco anos, foi apresentada por um professor de biologia molecular chinês. O cientista, de nome impronunciável, descobrira uma substância que permitia inverter os normais processos de queima de gorduras por parte do nosso organismo. Ao invés de estas gorduras se alojarem no organismo, provocando pneus indesejáveis, era agora possível, tomando um comprimido de manhã e outro ao deitar, brincar com a mãe natureza e provocar nas nossas células tal reorganização que todas essas gorduras eram imediatamente utilizadas como catalizadores para perder peso. Um cheeseburguer era agora, do ponto de vista nutritivo, a melhor refeição possível.

Marcas como a Coca Cola, a McDonalds e a Burguer King investiram milhões em novas campanhas publicitárias, reunindo elegantíssimas modelos internacionais a comer e beber dos seus produtos enquanto tomavam banho em conjunto. Os gurus da agricultura biológica e da comida saudável não tiveram outro remédio senão ir buscar os próprios queixos ao chão e engolir em seco. A sua estabilidade económica estava seriamente sabotada.

Coincidência ou não, o cientista chinês com nome impronunciável foi assassinado dias depois, encontrado morto com um punhado de batatas fritas enfiado pela goela abaixo; mas nada parou a máquina mediática.

O que a abrandou foram as más notícias, dois meses depois do lançamento do produto no mercado. Cerca de 50 por cento da população mundial (mais coisa menos coisa) era afinal alérgica à substância. Logo ali o número de suicídios disparou, especialmente entre raparigas adolescentes que acampavam à porta dos restaurantes de fast-food.

Um bom exemplo de quem era alérgico pode agora ser por nós encontrado, e graças aos benefícios que nos dão estas histórias omnipresentes e omniscientes, na forma esférica desta irmã gorda, que um dia gostara de ser magra mas cujo sonho tinha sido esmagado como um insecto sob as suas próprias nádegas. E a mãe de ambas as irmãs, que era também alérgica e também magra de mente mas gorda de corpo, via na filha mais velha a balofa que sempre fora; e no corpo escultural e atraente da filha mais nova a bomba sensual que sempre quisera ser.

Quem se saía bem desta situação era a irmã mais magra, cujas possibilidades de finalmente seguir a carreira de modelo que sempre desejara eram agora directamente proporcionais aos quilos de batatas fritas com sabor a barbecue que ingeria por dia.

- Tens de compreender que alguém deve dizer as verdades nesta casa – insistia ela, dirigindo-se à mãe – Eu sou magra e boa. Tu estás velha e com banha. E tu – apontou para a irmã – pareces um sofá.
- Querido, por favor larga o televisor e toma atenção à tua família… - implorava a mãe, enquanto a filha gorda começava a chorar.
- Bem, eu no fundo, no fundo, concordo com ela – disse o pai, palitando os dentes e estudando um lance polémico por parte do ponta de lança do Dínamo de Kiev.
- Porque o pai, apesar de se ter casado contigo – observou a filha magra - desenvolveu entretanto bom gosto. Talvez por isso ele passe horas infindáveis na Internet a ver aquelas…
- Ok, vamos lá acabar com esta conversa – o pai soltou um murro na mesa e toda a família se calou – Tu és magra e lindíssima. Tu, apesar de seres o amor da minha vida e coisa e tal, estás a ficar gorda. E tu – apontou para a filha mais gorda, subitamente esperançosa de uma palavra de apreço por parte do pai – és uma pessoa… lindíssima. Mas por dentro. Que mal haverá nisso?
- Nenhum! – concordou veementemente a filha gorda.
- É esta sociedade que nos coloca a todos loucos com esta coisa de emagrecer – resmungou a mãe.
- Bem, por alguma razão a tua filha mais velha está a comer brócolos e batata cozida – disse a irmã mais magra.
- Porque, ao contrário de certas pessoas, quero uma alimentação realmente equilibrada e saudável – a filha gorda parecia estar a empinar o nariz.
- Ou… - exagerou a filha magra, revirando os olhos como quem reflecte sobre um problema complexo de álgebra – Queres ser magra como eu e não podes.
- É um problema ormonal! – gritou a filha gorda.
- Hormonal é com H, sua personalidade lindíssima! – gritou a filha mais magra.
A mesa revirou-se, e a filha gorda caiu em cima da filha magra como um elefante que tropeça sobre uma cana de pesca.

No hospital disseram que a rapariga ia ficar bem, e perguntaram se ela tinha realmente ficado presa debaixo de um armário. A mãe confirmou que sim senhor, era isso que tinha acontecido, e a filha gorda voltou a sentar-se em duas das cadeiras da sala de espera, enterrando o nariz cheio de ranho nas duas mãos gordurosas e reiniciando um pranto atroz.

- Outra coisa – disse o médico – a sua filha apresenta valores anormalmente altos de triplicéticos alfa romeus.
- Ah.
- Isso significa que ela tem uma séria inflamação nos forínculos gastro-entrastinares e nas membranas hirdrófilas da cucumbina.
- Você está a brincar comigo?
- De todo. Isto dito em linguagem de quem não percebe nada de medicina significa que a sua filha vai morrer daqui a alguns dias caso…
- Oh meu Deus! Milha filha!
- Deixe-me terminar, caramba. Caso, dizia eu, não lhe seja administrada uma substância chamada…
- Tem a minha autorização. Qualquer tratamento necessário, faça-o!

O médico carregou as sobrancelhas.

- Tenho a sua autorização para salvar a vida da sua filha?
- Claro que sim!
- Que espécie de médico seria eu, se estivesse à espera da sua autorização para salvar uma vida?
- Desculpe-me, doutor, estou verdadeiramente nervosa e…
- E decidiu descarregar em mim, o homem que, por um relâmpago de génio, se lembrou de testar a sua filha quanto ao nível de triplicéticos alfa romeus. Parece-me justo.
- Doutor…
- Ouça, terminámos. Vou ali salvar a vida da sua filha – virou-se para a filha mais gorda – E a menina, está à espera de uma consulta de gastrologia?
- Eu quase matei a minha irmã – murmurou ela.
- Que disse?
- Sou uma gorda inútil…
- Ah – o médico afastou-se.

Talvez por ser um verdadeiro profissional, o médico compreendeu não só que a rapariga magra estava a morrer como que aquele altíssimo valor de triplicéticos alfa romeus era também um sinal estranho no organismo de alguém tão jovem. Pouparei o leitor a todos os detalhes e causas e consequências que se seguiram, até porque já me segue há algumas páginas e quer com certeza descobrir o que se passa.

Em traços largos, a comunidade científica depressa compreendeu que a substância que permitia transformar as gorduras em perda de peso era também responsável por um aumento abrupto de uma série de gosmas e fluidos biológicos que, em conjugação, levariam o indivíduo à morte em alguns meses. Levaram este problema à industria da fast-food, que assobiou para o ar a princípio mas que percebeu depois que, dada a morte dos milhares de milhões de seres humanos que tomavam a substância, a sua clientela desapareceria e com ela os seus lucros. Capitalismo para ali, falta de ética para acolá, traçaram um plano: a partir daquele dia, a substância para emagrecer comendo porcarias seria substituída por outra, que levava à criação de um vício crónico por comida de plástico em quem a tomasse. Os donos da fast-food mundial riram diabolicamente, esfregaram as mãos oleosas, e afagaram os gatos cinzentos que seguravam ao colo. Depois foram jantar.

As duas irmãs estavam sentadas na cama, e a diferença entre elas era difícil de estabelecer. A mais magra estava mais gorda, a mais gorda estava mais magra, e eram agora não duas esferas mas simplesmente dois potes de banhas com enorme volume, ainda que inferior ao de uma foca. A que fora mais magra ia no seu terceiro cheeseburger, e chorava. A que fora mais gorda ia no seu terceiro cheeseburguer, e chorava.

- Eu… Nem sei o que dizer… Sentir o que sempre sentiste… Ter os outros obesos lá da escola a gozar comigo… E a minha personalidade? – choramingava a que fora mais magra.
- Compreendes agora que não intereça o quanto uma rapariga é inteligente? Eles vão sempre diser mal. Sempre! Mesmo quando somos pessouas especiais como tu…
- Eu não sou especial… Sou uma gorda inútil.
- Não, não és… Tu és uma rapariga mesmo inteligente. Não é como eu, ou como a mãe… E querias ser modelo? Devias ir para engenharia electro-espacial, ou assim…
- Não percebo porque como tanto… Parece que estou viciada…
- E eu… Parece que preciso desta comida nogenta para sobreviver… E sinto que a culpa é do mundo, da sociedade, que cria em mim esta ânsia de não comer tanto… E quanto mais me dizem para não comer, mais fome me dá… E quanto mais vejo anúncios com hambúrgueres e porcarias, mais fome me dá… A sociedade quer que eu coma muito, mas também quer que eu coma pouco; e eu na dúvida vou e como o dobro. Mas a culpa não é minha… Eu juro que não é… Se isto fosse uma decisão pessoal, minha, que viesse…
- Passa-me as batatas – interrompeu a irmã que um dia fora mais magra.

Ela passou-as, olharam uma para a outra e riram, riram à gargalhada, duas gordinhas que se amavam mutuamente para além da banha.

Ter-se-ia abraçado, se conseguissem. Ainda tentaram colar-se uma à outra, mas os seus braços pequenos não eram suficientes para as envolver. Choraram mais. Depois foram jantar. 

Texto do Autor e ilustração de Mariana Fernandes.

1 comentário:

Anónimo disse...

Depois de ler isto, fui lanchar.